Reflexão: Livros que caminham: em busca do “algo mais”

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Alô, Comunidade! O advogado e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania, o professor Milton Vasconcellos, é colunista do Portal Comunidade Notícia. Ele vai trazer assuntos reflexivos sobre Pessoa com Deficiência (PcD).

Na coluna de hoje, Vasconcellos faz uma análise minuciosa ( diga-se de passagem “romântica”) de como é iniciado um relacionamento entre o leitor e o livro.  Confira:

Nada de pressa. Nessa fase de encantamento inicial, cultiva-se a paciência. A troca de olhares dura dias, afinal, por muitas vezes, o leitor passa por um livro e não o vê. Por isso a importância da “bagunça deliberada” por alguns dias… os livros devem estar nos mesmos locais, estratégicos, para cultivar e cativar, serem vistos e vividos.

 

Por Milton S. Vasconcellos

Livros que caminham: em busca do “algo mais”

 

Para Claudia e Nadjane  (amantes dos livros)

 

Foto: Milton S. Vasconcellos / Arquivo pessoal

No início, como toda paquera, os laços são frágeis, tímidos…

O processo de primeiro contato com um livro desconhecido é similar a um processo de encantamento que pode (ou não) evoluir para um “algo mais”.

Os olhos se buscam, contemplam… Nesse ponto, deixar estrategicamente os livros pelos parques, praças, praias, shoppings… tudo cuidadosamente pensado, numa “bagunça deliberada” que faz corar de inveja os maiores enxadristas, tudo muito bem pensado para “fisgar” o novo leitor, costuma ser uma medida bem eficaz.

Muitas idas e vindas… a desconfiança natural dos que não se conhecem… até que aquele momento mágico acontece e os olhos se cruzam: o leitor que nota um livro “abandonado” e começa a “paquerar” a capa…

De sua parte, o livro também se exibe, e além da capa mostra sua orelha, tudo muito lentamente. O título combina com a figura da capa, cores… Mas o processo é frágil e, por qualquer coisa, pode se “desmanchar no ar”.

Afinal vive-se “tempos de velocidade”: Whatsapp, Twiter onde é difícil a competição. Nutre-se a leitura rápida, da mesma forma como os relacionamentos de ocasião (que Bauman chamou de “amores líquidos”).

Total descompasso: água e papel nunca combinaram né verdade? (e mesmo que venham me falar em livros eletrônicos, a máxima se mantém: água e tecnologia também não combinam).

Mas… Deixemos Bauman de lado e voltemos aos livros…

Nada de pressa. Nessa fase de encantamento inicial, cultiva-se a paciência. A troca de olhares dura dias, afinal, por muitas vezes, o leitor passa por um livro e não o vê. Por isso a importância da “bagunça deliberada” por alguns dias… os livros devem estar nos mesmos locais, estratégicos, para cultivar e cativar, serem vistos e vividos.

Com o tempo, a troca de olhares dá lugar à curiosidade e, tal qual o homem/mulher que, após o primeiro contato gosta da cor dos olhos ou dos cabelos de sua/seu amante e  passa a observar os detalhes de sua  pretensa conquista ( o contorno dos olhos, os cachos do cabelo, etc), entre o livro e leitor surge uma troca de olhares;  da capa surgem cores, figuras e da natural curiosidade de ver além, passa-se à orelha do livro e a possibilidade da segunda fase.

Mas o processo – como qualquer paquera  que se intensifica – é gradativo e, junto com os olhares iniciais, vem os sorrisos, que equivale a uma leitura discreta e descompromissada, do sumário e das dedicatórias, nada mais (os “do contra” vão dizer que também leem a ficha catalográfica, mas todos sabemos que isso é hábito do povo de Biblioteconomia).

E, como não somos todos “bibliotecários ou bibliotecárias”, fiquemos só com as dedicatórias, no máximo uma epígrafe (quando elas existem).

Dos olhares trocados, apreciação da capa e da orelha, das dedicatórias e da epígrafe, vem o encantamento da introdução e com ela iniciam-se outras sensações físicas: o toque e o cheiro…

Ah… o cheiro: Quem nunca se encantou ao cheirar as páginas de um livro novo, nunca vai entender a fascinação que proporciona o cheiro dos cabelos da amante…

Debruçar-se sobre a introdução da obra é como o tocar de mãos pela primeira vez. Há aqui um misto de curiosidade com vontade de prosseguir (eufemismo para “tesão”), quando o dedilhar das páginas equipara-se ao toque carinhoso dos enamorados, o sentir da textura da pele, o cheiro.

Enfim, o contato físico.

Mas como toda obra que se desnuda aos poucos, da mesma forma como não se conhece alguém em apenas uma noite, tampouco se tem acesso a todas sensações sensoriais apenas com a introdução de um livro, (salvo se estiveres diante de uma  paixão, arrebatadora, um Machado de Assis da vida).

Persistência é, portanto, a palavra básica.

A leitura inicial que ultrapassa a introdução e alcança os primeiros capítulos equipara-se ao olhar curioso do amante sobre o corpo do outro que tenta ver mais do que aquilo que a mão permite desnudar. Vale-se aqui do pensamento, afinal a criatividade e o desejo são parentes próximos (dizem até que são irmãos).

Superada essa fase, a paquera passa e tem início o namoro. O leitor nesse ponto alcançou o desenvolvimento da obra e, após a leitura dos capítulos iniciais, já é um viajante que anda com suas próprias pernas, o namoro é a leitura já compromissada, a paquera que “vingou”.

E…, nesse ponto vive-se a felicidade dos primeiros momentos dos namorados: passeios de mãos dadas, a necessidade de mostrar ao mundo seu novo amor equipara-se ao leitor que anda com seu livro na mão (alguns embaixo do braço – numa óbvia demonstração de possessividade) em todos lugares, como um casal que passeia em público de mãos dadas.

Mas… não ouse pular etapas. Da mesma forma que não se deve ler o final do livro sem tê-lo “apreciado” em seu início e meio, o amante não postula o “algo mais” em um primeiro encontro.

A leitura se mantém constante e, capitulo a capítulo, o processo de conquista equivale a um strip-tease onde se alcança a nudez após se retirar peça, por peça, ou melhor, lê-se página por página.

Não existe pressa, existe prazer, encantamento. Páginas que se seguem.

Nesse ponto, o leitor – já cativado –não é mais senhor de seus atos. Não é mais ele a fazer o percurso, mas sim a personagem, invertem-se os papéis.

Pois a história liberta escravizando, em relações servis voluntárias; não existe mais o leitor ele é o próprio príncipe que beija ou a princesa beijada.

Tudo se encaminha para uma relação duradoura, será um casamento?

Pois que, quem conhece um livro de verdade, paquera, namora e se casa pra sempre. Pois. como dizia Rubem Alves: “Os livros que amo não me deixam. caminham comigo”. Esse é o ponto em que, numa relação, se percebe que o “algo mais” não é algo a se alcançar, mas sim algo que sempre esteve ao seu lado e caminhava contigo.

Paquere pois,

Namore pois,

Ame pois,

Caminhe com um livro.

 

 


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