Reflexão: A pele negra no 20 de novembro

Compartilhe com os seus amigos

Alô, Comunidade! O jornalista Helder Resende, colunista do portal Comunidade Notícia, é colecionador e Amante de Histórias em Quadrinhos (HQ), pós-graduando em Gestão de Marketing e Mídias Sociais e poeta.

Nos textos, ele vai trazer reflexões sobre o “mundo dos super-heróis”.

Na coluna de hoje, Resende faz uma análise bem pertinente sobre Jeremias, um personagem negro da história em quadrinhos “Pele” criado por Maurício de Souza, na década de 1960.  A história de Jeremias é forte, profunda e triste acerca do racismo.

O sonho “roubado” do Jeremias é o de ser astronauta. Durante a atividade na turma sua professora simplesmente ignora o desejo do garoto, designando um futuro que ela julga único possível para negros e essa atitude sim usurpa nosso direito de sonhar.

 

Por Helder Resende

A pele negra no 20 de novembro

Foto: Helder Resende / Arquivo Pessoal

Há mais ou menos duas semanas eu vinha tentando escrever um artigo sobre os super heróis negros para o dia da consciência negra, porém fui tomado por um súbito bloqueio criativo que simplesmente me impediu de escrever.

Então a inspiração para a coluna caiu como uma bomba. Bomba esta que explodiu não apenas sobre minha cabeça, mas na de todos os homens, mulheres e crianças pretas deste pais: o assassinato cruel e covarde de João Alberto Freitas, um homem negro de 40 anos, nas mãos de dois seguranças brancos, no interior de uma das lojas da rede de supermercados Carrefour, em Porto Alegre.

É claro que os cidadãos não negros também ficaram estarrecidos ante tamanha covardia, contudo para nós negros o golpe foi bem mais forte pela forma como ocorreu, pelos assassinos e por tudo ter ocorrido na véspera do dia da consciência negra.

Passado o assombro inicial e acompanhado da tristeza que se seguiu ao fato, além do medo de saber que algo parecido pode vir a ocorrer comigo, eu quis escrever não sobre o caso, mas sobre racismo. E embora eu pudesse citar mais uma vez o Pantera Negra, ou o Luke Cage, herói do Harlem – bairro historicamente habitado majoritariamente por afro-americanos, e que ganhou série na Netflix, eu decidi falar sobre algo mais caseiro, brasileiro.

Trata-se da HQ Jeremias:Pele, que integra o projeto de graphic novels com releituras dos personagens da Turma da Mônica, do grupo Maurício de Souza Produções (MSP). A história é produzida pelos artistas negros Rafael Calça (roteiro) e Jefferson Costa( arte) e apresenta uma visão inédita do personagem, embora quase tudo que se refira ao Jeremias seja novidade, pois apesar de ele ser um dos primeiros personagens criados por Maurício de Souza, na década de 1960, nunca havia protagonizado uma revista sequer, admite o Próprio Maurício de Souza, no prefácio de Jeremias: Pele.

Nesta edição da MSP os autores lançam ainda que tardiamente, os holofotes sobre o Jeremias com uma história forte, profunda e triste sobre racismo. O personagem título é uma criança como qualquer outra, com as melhores notas da classe até que em um evento corriqueiro ele tem seu sonho roubado pela primeira vez e começa então a sentir na pele negra o flagelo do racismo, um mal nascido junto com a escravidão e que insiste em se manter ativo e enraizado na sociedade em pleno século XXI.

Ao começar a perceber o preconceito apenas pela cor da sua pele, o Jeremias descobre um aspecto sombrio do ser humano. Eu me lembro que quando garoto vivi situações parecidas com as que são retratadas nesta HQ. Os autores contam que se basearam em suas próprias experiências e é assustador perceber como enfrentamos situações similares e mais triste ainda é saber que pouca coisa mudou desde então.

O sonho “roubado” do Jeremias é o de ser astronauta. Durante a atividade na turma sua professora simplesmente ignora o desejo do garoto, designando um futuro que ela julga único possível para negros e essa atitude sim usurpa nosso direito de sonhar.

A graphic foi ganhadora do prêmio Jabuti, o mais alto da literatura brasileira, é reconhecida como necessária no debate sobre o racismo, a história revela como o preconceito racial atinge até mesmo nossos seres mais inocentes. Há muitos relatos de como as pessoas se emocionaram ao ler esta HQ. Eu não cheguei a chorar, mas sem dúvidas ela me trouxe lembranças amargas de um período e de um ambiente que deveria ser seguro e lúdico. Tentaram roubar meus sonhos também, tentaram me fazer crer que a cor da minha pele me tornava automaticamente inferior, mas como o Jeremias eu resisti e resisto para que outros tantos “Jeremias” não conheçam este mal humano e possam chegar ainda mais longe que eu.

Passado o bloqueio criativo poderia escrever facilmente mais 10 páginas apenas sobre esta MSP tão necessária. Sua leitura ativou alguns gatilhos de fatos suprimidos inconscientemente, contudo também me fez perceber que a “casca dura” sugerida pelo pai do Jeremias é mais uma proteção do que um refúgio, um esconderijo. Diante do assassinato covarde e racista de João Alberto fica para mim, evidenciada a necessidade de realmente estarmos prontos a tudo, preparados dentro desta “casca dura”, como se fora um exoesqueleto para nos proteger e partir para a luta.

 


Siga o Comunidade Notícia no Facebook, Instagram e Youtube 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.