Reflexão: Dois ouvidos negros e uma boca branca
Alô, Comunidade! O colunista do portal Comunidade Notícia, o advogado e membro da comissão dos direitos humanos da OAB, subseção de Criciúma, Santa Catarina, Jorge Miguel Nascimento Guerra, vai trazer textos de inquietações que acontecem com frequência em nossa sociedade.
No texto de hoje, o advogado conta um pouco sobre a importância de escutar o outro e como o branco não dá atenção a luta dos negros. Confira:
Pessoas brancas num geral crescem sendo ensinadas (pela família e/ou pela sociedade) de que a sua voz é o universal, que o mundo é delas pra ser conquistado (como se já não o fosse), que podem ser o que quiserem e são aplaudidas em todos os passos desses processos, tendo os seus erros minimizados e relevados quando ocorrem.
Por Jorge Miguel N. Guerra
Dois ouvidos negros e uma boca branca
Muitos dos princípios que eu, um homem preto adulto, carrego comigo hoje me foram passados por minha avó, Dona Carmem, que, tendo trabalhando desde muito nova, não teve a oportunidade de estudar além do ensino fundamental e ainda assim figura como uma das pessoas mais sábias que eu conheço até hoje.
Na minha família é muito comum que, quando qualquer um esteja passando por um problema ou precise tomar uma decisão difícil, vá conversar com dona Carmem pra ouvir os seus conselhos tão sábios.
Quando eu era criança e aprontava algo, existia uma ameaça feita pela minha mãe que conseguia ser pior que uma surra ou um castigo: Contar o que aprontei numa reunião familiar, que resultaria em receber broncas de quase todos os familiares, sem poder responder (e isso acontecia tanto na família materna quanto paterna).
Hoje em dia, já crescido, valorizo muito os ambientes de troca que consigo estabelecer com outras pessoas pretas, uma vez que as experiências fomentadas pelo sistema racista são, quase sempre, muito parecidas independentemente de fatores como sexo, idade e cidade em que nasceu.
James Baldwin tem uma frase que resume bem a experiência negra em sociedades racistas: “Ser negro e relativamente consciente é estar quase sempre com raiva.” É neste ponto que a escuta e o compartilhamento se fazem presentes e indispensáveis. Estudar questões raciais no Brasil é quase sempre angustiante e o racismo tem tantas formas de se expressar que muitas vezes eu presencio uma situação que “me incomoda” e que não sei explicar bem o porquê, mas, se sento pra conversar com algum amigo ou amiga sobre, conseguimos chegar juntos na razão desse incômodo.
Um outro ponto muito importante é o sentido de comunidade. A maioria das pessoas pretas e engajadas que conheço entendem que a luta contra o racismo serve a um propósito muito maior do que nós mesmos, que as mudanças que reclamamos é pra nós e para os nossos, e que nunca conseguiremos falar pelas necessidades de toda uma comunidade negra. Existem grupos específicos, com necessidades específicas e a principal forma de ajudar nestes casos é escutar o que esses grupos tem a dizer e considerar essas ponderações nas nossas atitudes.
Pouco tempo atrás eu fiz uns tweet falando sobre como tenho percebido que a branquitude possui uma ânsia por protagonizar qualquer discurso, ser o centro das atenções em qualquer assunto e situação, ainda que não os caiba, e um amigo me chamou no WhatsApp concordando e citando uma situação em que ficou incomodado porque não podia expressar a sua opinião numa determinada discussão ainda que tivessem pessoas mais qualificadas falando sobre o assunto naquele momento.
Voltando à Dona Carmem, ela sempre trás ditados do tipo “quando um burro fala o outro baixa a orelha” e “você nasceu com dois ouvidos e uma boca pra escutar mais e falar menos”. O aprendizado que tirei dessa criação foi a importância de ouvir aqueles que me cercam e pra só depois falar, se houver algo a contribuir. E, através da escuta, sei que a maioria das famílias majoritariamente pretas que conheço seguem esse mesmo molde.
Pessoas brancas num geral crescem sendo ensinadas (pela família e/ou pela sociedade) de que a sua voz é o universal, que o mundo é delas pra ser conquistado (como se já não o fosse), que podem ser o que quiserem e são aplaudidas em todos os passos desses processos, tendo os seus erros minimizados e relevados quando ocorrem. Isso criou uma branquitude que se entende no direito de falar por e para si, sobre si e sobre todos os outros porque é o que são: Os outros, grupos opostos (e menores) aos brancos.
Não estou aqui dizendo que as famílias pretas não criam as suas crianças dizendo que elas podem e devem ser o que quiserem, mas que ainda assim ensinamos e cobramos a escuta dos nossos e que quando crescemos aprendemos a aplicar isso nos diversos espaços em que nos colocamos.
Muito se fala sobre “dar voz” na internet atualmente, mas de que adianta dar a voz a quem quer que seja se não tivermos quem escute o que se diz? A branquitude (e aqui eu não faço qualquer distinção de espectro político) muito fala e pouco escuta. Talvez tenha faltado Dona Carmem pra ensinar a eles que temos dois ouvidos pra escutar mais e uma boca pra falar menos.