Nas periferias de Salvador, a arte resiste e se renova
As vozes, as batidas percussivas e as danças fazem parte das comunidades periféricas de Salvador. Em cada canto e esquina, a arte domina todo o cenário demográfico dos guetos da capital baiana. Seja dentro de uma casa, barzinhos, restaurantes, ou nas praias, a cultura baiana ferve.
A arte de dançar, cantar e de batucar, muitas vezes, eleva o potencial das pessoas. Os protagonistas das artes não desistem, mas, além da falta de apoio financeiro, ainda veio a pandemia para aumentar o nível de obstáculos e o setor cultural foi uma das categorias mais prejudicadas por esse cenário.
Devido ao isolamento social, shows, eventos e espetáculos foram cancelados, teatros e cinemas foram fechados e muitos artistas informais ficaram completamente parados, porém, alguns encontraram alternativas para dar continuidade às suas carreiras.
Foi o caso do músico Léo Oliveira, que usou as redes sociais para conquistar a favela onde mora, Pernambués, através das batidas percussivas. Ele usou a internet para promover a carreira e apresentar toda a sua musicalidade. O percussionista, que iniciou a vida musical por influência do irmão, diz que acredita no poder de transformação da música. “Para mim, a percussão é tudo. Na verdade, a música tem tantos significados, que é até complicado definir, mas eu considero um fenômeno da natureza, por seu incrível poder de transformação”, afirma o músico de 30 anos.
Léo relata que teve muitas dificuldades no início da carreira, em 2016, por não ter dinheiro para ir à escola de música, nem ter instrumentos próprios para tocar. “Eu ia andando da minha comunidade, em Pernambués, até o Candeal, todos os dias. Aproximadamente 40 minutos para ir, e 40 minutos para voltar. Um líder comunitário chamado Jair Rezende que me ajudava quando podia”, relembra. Mas, mesmo com todos os problemas, Léo diz que a profissão proporciona muitas coisas positivas: “existem vários pontos benéficos, como me conectar com a natureza, com as pessoas, além das energias positivas que recebo. Fico grato quando as pessoas do bairro me chamam para tirar fotos e reconhecem o meu trabalho, o meu esforço. Elas vibram com a forma como consegui vencer. Virei espelho para muitos jovens da comunidade. Não foi fácil chegar onde cheguei, mas o reconhecimento me fortalece”, conta agradecido.
Todo esforço do músico ficou à prova durante a pandemia. Ele teve que achar alternativas para mostrar o trabalho e utilizou a internet para intensificar os estudos, fazendo apresentações artísticas por meio das redes sociais. Foi através da internet que Léo ganhou notoriedade nacional e, agora, devolve gratidão ao bairro onde cresceu. Ele mostrou todo o afeto pela favela onde mora através de um clipe percussivo divulgado na internet.
“No início da pandemia não podíamos sair de casa, foi um momento complicado, mas aprofundei em conhecimentos por meio da internet, explorei bastante nas redes sociais uma forma de ser visto”, comenta. “Fiz questão de realizar um clipe instrumental autoral chamado ‘Realidade Percussiva’ no meu próprio bairro”, afirma. O trabalho está no canal do Youtube do músico: Léo Oliveira. “O clipe traz um pouco da minha realidade e apresenta um pouco da minha comunidade”, conta alegre.
O carinho pelas próprias raízes é muito grande. Pernambués tem a maior população negra de Salvador e é um dos bairros mais populosos da capital baiana. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base nos dados do Censo 2010, de um total de 64.983 moradores, 53.580 se auto declaram pretos ou pardos.
O clipe deu tão certo que Léo vem fazendo participações em diversos eventos e com artistas renomados da música brasileira. “Fui convidado para realizar um trabalho maravilhoso com uma grande empresa de cervejaria, com as cantoras Iza e Larissa Luz e o cantor e compositor Carlinhos brown”, fala emocionado.
Mas, mesmo com o sucesso, o músico não vive só da arte, ainda precisa conciliar o trabalho musical com o emprego de agente de segurança e auxiliar administrativo.
“Dia sim, dia não, trabalho de segurança. Também atuo como auxiliar administrativo. Geralmente, os shows são feitos à noite e os ensaios, uma ou duas vezes por semana. Além disso, ainda estudo, busco conhecimento para aperfeiçoar a minha percussão, me organizo para tudo ficar em perfeitas condições. É correria”, afirma.
Léo Oliveira diz que não consegue viver sem a música e pretende tocar para o resto da vida, mesmo se não tiver numa banda ou de forma profissional. “Uma vez que você começou a tocar, nunca mais vai parar, não tem como. Vou levar para o resto da minha vida, ainda que não seja profissionalmente, ou em bandas, mas em casa, nas resenhas com os amigos”, garante.
Ele, que tem um sonho de transformar pessoas através da música, manda um recado para aqueles que queiram iniciar na carreira: “meu conselho é que estude e pratique. Tente estudar em alguma escola de música e siga em frente sempre, com determinação se alcança os objetivos”, finaliza.
Amor pela música
Salvador é uma cidade rica em musicalidade. A prova disso é o título de “Cidade da Música”, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o qual tem sido renovado todos os anos, desde 2015, após constante acompanhamento internacional e deverá ser concedido mais uma vez à capital baiana, principalmente depois dela ganhar o museu “Cidade de Música”, em setembro de 2021, espaço localizado no bairro do Comércio, ao lado do histórico Mercado Modelo, que celebra a história da música desde a fundação da cidade até os dias de hoje. Essa renovação inclui artistas como Alexandre Santana.
Conhecido no meio artístico como Alê Santana, o cantor e compositor, de 37 anos, explica que começou a carreira junto com amigos da favela onde nasceu e foi criado, o Sieiro, no bairro da Liberdade, em Salvador. Foi lá que iniciou fazendo backing vocal e tocando cavaquinho, até ter a oportunidade de cantar.
“A música é alimento para a minha vida, tem um significado profissional muito importante; com ela, consigo chegar a diversos lugares, levar mensagens bacanas às pessoas, participar de momentos importantes na vida de alguém e ter perspectiva de desenvolvimento econômico e profissional. Também tem influência total na minha vida, seja escutando, por questão de trabalho, ou por prazer, sempre me atravessa de maneira especial e me faz refletir ou sentir algo novo”, revela.
Com 24 anos de carreira, Santana já produziu muitas músicas, principalmente no período pandêmico. “Já compus muitas músicas e posso dizer que, somente nesse último ano de 2021, fiz mais de 130”, garante.
É à composição que Alê vem investindo e trabalhando com intensidade. Ele revela que ser compositor é até mais prazeroso do que cantar, porque escrever é algo difícil. “O compositor precisa existir para que o cantor tenha o que cantar. É por isso que acho fantástico. É uma sensação que não consigo descrever, só sentir. Você precisa juntar a melodia com as palavras e daquilo dali tem que sair uma obra, uma canção. É incrível”, descreve entusiasmado.
O reconhecimento nas ruas é a maior alegria que um artista recebe na carreira. E Santana fica grato quando recebe mensagens de carinho. “Acho que a maior conquista é saber que a sua arte faz parte da vida das pessoas. Eu recebo mensagens de gente que tem minhas músicas como trilha sonora de momentos especiais e isso é muito massa”, diz emocionado e enfatiza que, desde pequeno, sempre gostou de criar e ver as coisas por um lado diferente, de uma forma própria.
“Eu gosto de criar o meu pacote, vamos dizer assim, a gente nunca parte do zero, parte do que outros já fizeram, mas a gente sempre pode colocar do nosso jeito, então eu vejo um som sertanejo, um axé, forró, eu sempre vou tentar colocar a minha cara naquilo dali que acho fundamental”, diz.
“Meu sonho é viver exclusivamente da música e poder transformar vidas a partir da minha arte”. Além de músico, Alê também é jornalista e conta que, nos dias de hoje, é fácil conciliar os dois trabalhos.
“Conciliar o trabalho do jornalismo com a música, para mim, já foi um pouco mais complicado, porém hoje em dia não é tanto, pois amadurecendo a gente vai tentando organizar as coisas. Hoje tenho um trabalho solo e é mais fácil porque eu tomo as decisões das coisas, não dependo dos outros para agenda e aí fica mais tranquilo para ajustar o trabalho como jornalista”, explica.
Segundo o músico, no início da carreira as pessoas não acreditavam nele por causa da estética, pois diziam que ele era gordinho e que não daria conta da carreira musical. “As pessoas diziam: ‘você é gordinho, não vai dar conta’. Isso acontecia muitas vezes”, revela.
O cantor relembra algumas histórias marcantes de preconceito por causa da aparência. “Uma vez fui cantar em trio numa micareta e vi um cara falando com desdém sobre minha aparência: ‘não estou colocando muita fé, mas vamos lá, né’. No final do evento, esse cara veio me falar que eu tinha cantado bem demais”.
Contudo, nada fez o músico desistir, pois existe uma relação de amor com a música e ele acredita na própria capacidade para seguir em frente. “Se eu acredito no meu potencial, tenho que dar meu máximo para as pessoas”, afirma.
E foi com todo amor pela música que Alê conseguiu lidar com o momento mais forte da pandemia. “Em relação ao período da pandemia foi um pouco complicado, porque, artisticamente, eu não consegui fazer nada, além das lives. A maioria dos músicos não tinha estrutura em casa. Teve momentos complicados, mas também de produtividade”, relembra.
Para o futuro, Alê pretende voltar a fazer shows com o projeto “Afroamor”: “eu quero voltar aos palcos cantando músicas dançantes, que falam de amor e também da comunidade negra. Além disso, o projeto também faz devoção aos blocos afros, aos artistas da black music. Tudo um pouco do que eu já agreguei na minha história com a música, com a minha identidade, com a minha verdade, misturando ritmos africanos com a nossa percussão baiana”, diz.
O Poder da dança
Durante a pandemia, a professora de dança Jedjane Mirtes de Souza, 40 anos, encontrou nas redes sociais uma forma de mostrar as expressões corporais, o molejo e a negritude. Ela relata que a pandemia da Covid-19 foi uma das grandes dificuldades que enfrentou na profissão, pois as atividades foram todas canceladas.
“Foi muito difícil e delicado, pois a pandemia foi o maior problema que já enfrentei e enfrento na minha carreira. O setor foi altamente prejudicado. Teve uma necessidade de cancelar todas as atividades artísticas, de onde vinha a maior parte do meu sustento: cancelaram shows, palestras e eventos”, lamenta.
A alternativa para não ficar parada no período mais intenso foi a utilização das redes sociais. “Nunca tinha usado as redes sociais para divulgar os meus trabalhos, era apenas hobby, mas, com a questão da pandemia, senti a necessidade de adentrar no mundo virtual para continuar fazendo o que faço, que é dar aula de dança, e consegui atingir alunos. A surpresa foi ter alcançado um número tão grande, dentro e fora do Brasil”, conta divertida.
“Participei de muitos congressos online e vi uma porta que talvez não se feche nunca mais, pois, mesmo que o mundo volte ao normal, as aulas online vieram para ficar. Então, isso foi um grande apoio e foi o canal que tive para poder me manter e continuar a fazer o que sempre fiz”, acrescenta a dançarina.
Mesmo com toda a problemática da pandemia, a professora sempre acreditou no poder da dança. Ela diz que essa arte pode fazer uma pessoa conhecer o próprio corpo e limites, além de encontrar outras formas de expressão, conhecimento histórico e cultural. “Eu utilizo a arte para fazer o meu cotidiano. Com ela faço educação, pensamento crítico, autoconhecimento e me mantenho viva para continuar criando possibilidades”, afirma.
Jedjane teve o primeiro contato com a dança aos 12 anos e hoje brilha no cenário baiano e nacional com os seus leves e encantadores movimentos. Já foi Rainha Negra do Bloco Afro Malê Debalê, no carnaval de 2014, e finalista, por três anos consecutivos, do concurso de beleza negra do Bloco Afro Ilê Aiyê.
Com pesquisa na dança afro-brasileira, a professora tem uma vasta experiência, principalmente no ballet clássico infantil e na dança popular brasileira. “Eu trabalho muito para eventos de casamentos, 15 anos, mas também com coreografia para espetáculo de teatro, essa é a minha maior produção”, conta.
Moradora de Pernambués, a dançarina enfatiza que o lugar de onde veio foi fundamental para a própria vida: “a minha história é um resultado da minha comunidade. Se eu continuo fazendo dança, é porque acredito no poder da arte de transformar vidas”, diz.
A artista diz que a arte ajuda na saúde das pessoas, pois combate a depressão e a ansiedade. “A dança tem um excelente resultado físico, porém, poucos conhecem o maravilhoso resultado mental e espiritual. Ela pode treinar seu cardio, estimular o aumento de massa magra, queimar calorias e o mais importante: curar problemas como depressão, ansiedade, Alzheimer, entre outros”, diz.
Ela conta que foi a partir da dança que começou a perceber uma visão mais ampla do mundo, uma abertura de horizontes e olhar sensível, e revela qual o seu maior sonho: “fazer da arte uma fonte poderosa para melhor acesso à educação para todos”, revela.
Dançar é para qualquer pessoa, de qualquer idade, é o que fala Jedjane. Ela conta a história de uma idosa que entrou na turma de dança aos 67 anos de idade.
“É sobre uma senhora maravilhosa que só observava os meus alunos. Um dia perguntei para ela: você não vai fazer aula? Ela olhou para mim e disse: ‘eu, com essa idade, quase 70 anos, posso fazer a sua aula?’, eu falei: pode não, deve. A minha aula é para todos. Eu acredito que a dança é para todos”, fala alegremente.
Além de gostar de contar as diversas histórias, a professora também se posiciona quando o assunto é sobre a importância de a mulher negra ser reconhecida na sociedade pelos trabalhos que desenvolve.
“Temos que fazer uma grande reparação com as mulheres na nossa sociedade: reconhecer que arte é tudo aquilo que, há muito, vem sendo bem feito. O trabalho da baiana de acarajé, da cozinheira, da bordadeira, da costureira, perceber que, durante muitos anos, essas mulheres, a maioria delas negras periféricas, já estavam nas comunidades fazendo arte muito bem feita e, então, eu preciso valorizá-las”, afirma.
Ela deixa uma mensagem para todos que queiram ingressar na vida artística: “a arte é necessária para a formação humana. O contato com ela muda para sempre a pessoa; dominá-la, seja ela qual for, música, canto, teatro, pintura, artesanato ou dança, pode ser uma via de escape para muitos problemas somatizados durante a vida”, finaliza.
Em cada esquina tem uma notícia boa!! Divulgue!