Reflexão: Eu sou porque Beyoncé é
Alô, Comunidade! Hoje, segunda-feira, 03 de agosto, é dia de coluna!!
O Advogado e membro da comissão dos direitos humanos da OAB, subseção de Criciúma, Santa Catarina, Jorge Miguel Nascimento Guerra, vai trazer textos de inquietações que acontecem com frequência em nossa sociedade.
No texto de hoje, o advogado conta um pouco sobre a pauta racial na carreira da cantora norte-americana, Beyoncé. Confira:
Por Jorge Miguel N. Guerra
Eu sou porque Beyoncé é
Eu fui um adolescente muito fã da música POP norte americana e, dentre todas aquelas figuras femininas poderosas, Beyoncé sempre foi a que mais me chamou atenção. Uma mulher preta, talentosa e muito bem sucedida, construindo uma carreira cada dia mais bem consolidada.
Como um fã ávido que sou, acompanhei todas as etapas dessa trajetória, que nem sempre foi fácil. Vi, por exemplo, a Beyoncé extrovertida e de riso fácil se tornar a Beyoncé que não concede mais entrevistas e que possui total controle sobre os aspectos da sua vida pessoal que chegam à grande Mídia. Tudo isso, é claro, em razão de inúmeros boatos e distorções constantemente propagados.
Num geral, Beyoncé sempre foi bem aceita no mundo POP por sempre entregar trabalhos com uma qualidade inquestionável e por sempre emplacar diversos hits com todos os seus lançamentos, sem exceção. Com toda essa bagagem, ela conseguiu se estabelecer profissionalmente ao nível de possuir total controle da sua carreira e poder então direcioná-la para onde quisesse. Foi o que ela fez.
Ao contrário do que possa parecer, o foco na questão racial na carreira da Beyoncé não aconteceu de uma hora para outra. Podemos destacar aqui os lançamentos de Run The World (girls) e Grown Woman, respectivamente, em 2011 e 2014, em que já podíamos notar as referências africanas tanto na produção musical quanto no visual dos clipes.
No entanto, foi em 2016, com o lançamento do álbum Lemonade, em abril de 2016, que Beyoncé focou toda a sua produção nas pautas raciais. A faixa principal do álbum, Formation, trata sobre a violência policial nos EUA, com direito a apresentação da música no intervalo do Super Bowl, horário de maior audiência da TV estadunidense.
Desde então, tendo as questões da população negra como base para todos os seus lançamentos, Beyoncé passou a sofrer críticas pesadas como há muito tempo não recebia. Vários políticos se manifestaram alegando que que o clipe de Formation era um desrespeito à polícia e a crítica em geral também fez o seu papel criticando não só a música como o álbum inteiro que trás frases de Malcolm X, alusões à cultura iorubá da África Oriental e discorre muito sobre as dores de uma mulher preta. Aqui no Brasil, ela ganhou o “apelido” de ativista de telão nas redes.
Beyoncé é conhecida pelo seu perfeccionismo e as suas obras a partir do Lemonade não fogem à regra. Sobretudo os álbuns Everything Is Love (2018 – Em parceria com o seu marido Jay-z) e The Gift (2019) tratam a negritude sob uma ótima diferente do que o Ocidente está acostumado a consumir, exaltando a cultura africana através da força e da realeza que a ancestralidade negra nos confere.
E aqui precisamos falar sobre representatividade. Se pra mim, um homem preto, é surreal presenciar e poder acompanhar cada lançamento de uma artista desse porte não só pautando a negritude, mas lembrando a todo momento que somos descendentes de reis e rainhas, imagina a identificação de uma mulher preta. Imagina a identificação de uma jovem negra que pode crescer tendo Beyoncé cantando Brown Skin Girl, cuja letra diz:
“Menina negra, sua pele é como pérolas
Com suas costas contra o mundo
Eu nunca trocaria você por mais ninguém, diga
Menina negra, sua pele é como pérolas
A melhor coisa do mundo todo
Eu nunca trocaria você por mais ninguém”
A experiência negra em países que passaram pelo abominável sistema escravocrata ainda é traumática e os nossos problemas devem sim ser sempre apontados para que possamos superar o sistema racista, no entanto, a existência negra diaspórica não se resume aos horrores do racismo. O nosso berço, África, precisa ser visto além da dualidade ocidental que o resume ao exotismo folclórico que descaracteriza a religião e a cultura ou às mazelas da fome e da pobreza (infringidas pelo homem branco, diga-se de passagem). África tem cultura, filosofia, religião, literatura, economia, desenvolvimento etc. próprios e que o nosso olhar para todas essas coisas deve sempre partir de um olhar de valorização.
É exatamente isso o que Beyoncé tem feito. Utilizando de toda a sua plataforma gigantesca para mudar os olhares preconceituosos e distorcidos e o ocidente dirige a África. O diferencial é a forma como ela faz isso. Beyoncé não dirige o trabalho dela aos brancos, para que entendam a importância do ela está fazendo, ela empodera pessoas pretas, impulsionando para que busquem sempre as suas raízes e a partir deste local, sejam potências contra o sistema racista.
E aqui posso dizer com tranquilidade que o seu trabalho tem dado resultados, vide a quantidade de críticas dirigidas a ela e que, infelizmente, o termômetro que mede essa febre são as críticas cada vez mais ousadas aos seus trabalhos recentes. Os críticos que eram só elogios para trabalhos como Crazy in love, Single Ladies e Mine, músicas que falam sobre amor, hoje criticam o posicionamento de Beyoncé, qual não seja a surpresa quando ela esteja direcionando a narrativa dos seus trabalhos especificamente para as pessoas negras.
E eu nem desconsidero a potência de artistas pretos que pautem o amor. Liniker, cantora preta e brasileira, fala sempre sobre amor em suas canções e isso também é revolucionário. O afeto preto cura. O ponto aqui é que a branquitude parece listar alguns assuntos sobre os quais podemos/devemos falar, sobre os quais eles toleram e, no momento em que assumimos a responsabilidade das nossas narrativas e passamos falar como, sobre a para as nossas necessidades, eles sentem o incômodo e assumem a defensiva/ofensiva.
Por fim, o meu desejo é que a Beyoncé inspire milhares de pretos e pretas ao redor do mundo para que estudem a nossa história, se empoderem e passem a protagonizar os debates sobre as questões raciais. Existe uma filosofia africana chamada Ubunto que se resume na máxima “Eu sou porque nós somos” e é exatamente nisso que eu acredito. Eu sou porque Beyoncé é, porque a minha mãe é, a minha avó é, as minhas tias são e todas as pessoas pretas que cruzaram o meu caminho são. A nossa história enquanto povo é marcada por sofrimento, mas não é o sofrimento que nos define, muito pelo contrário, é a força do nosso povo que nos fez resistir e existir até hoje mesmo em condições tão adversas. Ubunto.
Texto incrível! Parabéns!!
Me faz refletir tanto… amo seus textos
Excelente texto! Somos todos porque somos por nós. Que Beyoncé continue incomodando com sua arte tão necessária.