Reflexão: Partimos enfim do “lugar algum” para “algum lugar”? Perdão…perdão!

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Alô, Comunidade! O advogado e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania, o professor Milton Vasconcellos, é colunista do Portal Comunidade Notícia. Ele vai trazer assuntos reflexivos sobre Pessoa com Deficiência (PcD).

Na coluna de hoje, Vasconcellos faz uma analogia entre a obra “Primeiras Estórias” de Guimarães Rosa, que narra o conto “a Terceira Margem do Rio”, com Pessoa com Deficiência que passa da invisibilidade social completa para ser tratada como uma pessoa doente. Confira:

 

Abre-se aqui passagem para uma constatação: se o personagem de Guimarães vai para um “lugar nenhum” pois nem vai embora, nem volta para a terra firme, mantendo-se em um “perto e longe” de sua família, assim também procede com a pessoa com deficiência que passa da invisibilidade social completa para ser tratada como uma pessoa doente, merecedora de cuidados e caridade. Afinal, deixaria de ser um “ser invisibilizado” para ser doravante um ser doente, digno de caridade e tratado como “anormal” (numa sociedade cheia de “normais”).

 

Por Milton Vasconcellos

 

Partimos enfim do “lugar algum” para “algum lugar”? Perdão…perdão! 

 

“Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?”

(Guimarães Rosa em “A Terceira Margem do Rio)

 

Foto: Milton S. Vasconcellos / Arquivo pessoal

Em sua magistral obra, “Primeiras Estórias” (publicado em 1962) Guimarães Rosa narra o conto “a Terceira Margem do Rio” em que um homem de meia-idade abandona sua família e vai morar em uma canoa, isolado em um rio.

Texto complexo e que permite múltiplas interpretações. O rio – como se sabe – possui, fisicamente, duas margens. Uma terceira margem do rio seria uma proposta de compreensão sobre o metafísico?

Não sei… prefiro ficar com o Professor da USP José Miguel Wisnik quando diz que este é “um texto para passar a vida inteira lendo, onde o leitor conversando com a vida o conto se deixa ler”.

E assim o fiz. Li este texto pela primeira vez quando era adolescente, numa época de minha vida em que as leituras de grandes autores normalmente eram feitas por obrigação da exigência do vestibular, (pra quem não conhece tratava-se do grande Leviatã dos adolescentes e jovens do século passado), mas que neste século sequer existe mais (deve ter morrido de Covid-19 ou não conseguiu conexão de internet para participar da reunião).

Hoje, mais velho, consigo enxergar a terceira margem do rio citada no conto de Guimarães quando do debate sobre a compreensão de deficiência e os reflexos que cada uma desta compreensão trouxe para o que entendemos ser uma “pessoa com deficiência”.

Metafísica? Ora, me permitam…

O homem de Guimarães, deixa sua casa, mulher e filhos e, após construir uma canoa com sólida madeira (mas fabricada com espaço para apenas o remador – como bem nos informa Guimarães em sua obra), vai para o rio, partindo de “um lugar” para um “não lugar”, afinal passaria o resto de seus dias ali na canoa entre uma margem e outra.

A perspectiva histórica sobre direitos de pessoas com deficiência segue caminho inverso, partindo de um “não lugar” (o período anterior ao século XX onde prevalecia a invisibilidade social destas pessoas), para ”um lugar” (período do século XX conhecido pela literatura como modelo biomédico, onde a deficiência era tratada como um tipo de patologia, uma disfunção do corpo).

Abre-se aqui passagem para uma constatação: se o personagem de Guimarães vai para um “lugar nenhum” pois nem vai embora, nem volta para a terra firme, mantendo-se em um “perto e longe” de sua família, assim também procede com a pessoa com deficiência que passa da invisibilidade social completa para ser tratada como uma pessoa doente, merecedora de cuidados e caridade. Afinal, deixaria de ser um “ser invisibilizado” para ser doravante um ser doente, digno de caridade e tratado como “anormal” (numa sociedade cheia de “normais”).

Assim seguiu a vida e os filhos do personagem de Guimarães casaram-se, tiveram filhos e se mudaram, mas o homem permanecia lá, em sua canoa.

De nossa parte, o modelo biomédico foi superado, a deficiência passou a ser considerada pela ONU tema afeito aos direitos humanos, surgiram novas legislações e um paradigma novo: o modelo social de deficiência, propondo uma nova compreensão onde a deficiência não mais era concebida como uma patologia, mas sim como um atributo, uma característica da pessoa (e não um motivo para sua segregação).

Evoluímos? Partimos enfim do “lugar algum” para ‘algum lugar”?

Ao final do conto de Guimarães, ao longo de uma vida e já com cabelos que iniciavam a ficar grisalhos um dos filhos voltou ao rio e acenando com um lenço fala com o pai – que estava a distância de um grito –“ Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto… Agora, o senhor vem, não carece mais… O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!…” O pai o escutou, acenou e vinha em sua direção, porém, apesar da proposta feita e do aparente aceite entre ambos, o filho, apavorado acovardou-se, saiu correndo pedindo perdão, perdão.

Metaforicamente é como vejo o tratamento atual da pessoa com deficiência no âmbito do que se convencionou chamar de modelo social: um sujeito de direitos sem direitos, titular de um belo conjunto normativo que não tem aplicação prática, um discurso de inclusão sem incluir, pois quando estas pessoas sofrem e por qualquer motivo precisam do Estado – avocando o cumprimento de seus muitos direitos previstos nas leis – Ele (o Estado) acena de volta para fugir apavorado pedindo perdão, perdão.

 

 


 

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